A Morte e a Busca por Sentido

Por Michele Müller

Se os pacientes fossem mais escutados e orientados, o prolongamento da vida se mostraria, muitas vezes, menos importante que o bem-estar, garantido pelo simples cuidado e suporte emocional.

ilustração para Histórias Extraordinárias de Edgar Alan Poe.
Hermann Vogel, 1884

O homem que dedicou grande parte dos seus 81 anos à busca pela essência do ser humano – tantas vezes escondida debaixo de entraves biológicos – honrou o título de “poeta da medicina contemporânea” ao ver morte tão de perto. O neurologista britânico Oliver Sacks dividiu com o mundo a perceptiva lúcida e serena de quem ganhou a chance de se despedir da vida. Disse que sentiu imediata mudança de foco. Que a prioridade agora seria ele, seus amigos, seu trabalho.

Em seu tempo, mais valioso que nunca, deixou de caber o que não é essencial. Ao se pronunciar sobre a fase terminal, demonstrou que é possível conciliar o amor pela vida com uma sensação de desapego a ela. “Eu tenho conseguido ver a vida de uma grande altitude, como se fosse uma paisagem, e com um profundo senso de conexão de todas as suas partes”, descreveu, contrapondo a sensação com sua imensa vivacidade e necessidade de aprofundar ainda mais sua relação com aqueles que importam. Como se a busca por significado, latente no dia a dia mais ordinário, de repente se mostrasse mais simples e mais nítida.

O ganho da gratificação, da serenidade, muitas vezes culmina na proximidade da morte, quando não conseguimos mais tentar negar ou controlar as transformações da vida. Não é a única, mas é uma das principais vias que nos transporta para um estado de consciência que torna mais fácil aceitar a transitoriedade e a finitude. Para o neurologista e filósofo Sam Harris, autor de Waking Up (Acordando – Uma Guia Para Espiritualidade Sem Religião), essa é a verdadeira experiência espiritual: descobrir que se pode estar confortável nesse mundo sem um real motivo, transcendendo os limites aparentes do próprio ser.

A morte se aproxima zombando da pressa, aliviando a ansiedade que tira o foco da mente, derrubando relações superficiais e muitas vezes conceitos arraigados. Em meio a incertezas e tristezas, põe tudo em seu devido seu lugar, organiza prioridades e apresenta belezas que a vida, quando parece infalível, não deixa enxergar.

“Depois do nascimento de um filho, a contemplação da morte é a maior força transformadora do ser humano” – palavras de quem acompanha de perto, diariamente, a etapa final de muitas vidas: a geriatra Ana Cláudia Quintana, autora de A Morte è Um Dia Que Vale a Pena Viver. (ed. Sextante, 2019). Ela está entre os raros profissionais brasileiros que escolheram se dedicar àqueles que a medicina já não tem como salvar. Fundadora, juntamente com três sócios, da Casa do Cuidar, em São Paulo, é referência em cuidados paliativos em um país onde poucos sequer ouviram falar dessa importante área da medicina.

A falta de envolvimento institucionalizado de profissionais no fim da vida, assim como a pouca transparência na relação médico/paciente, foram alguns dos principais quesitos que colocaram o Brasil entre os três piores países do mundo em “qualidade de morte”, numa avaliação da Economist Intelligence Unit (EIU), integrante do grupo que edita a revista The Economist, em 2010. Em contrapartida, temos uma legislação bastante favorável aos pacientes em fase terminal, sendo que desde 2011 os cuidados paliativos são considerados área de atuação médica regulamentada, o que pode apontar para uma melhoria nesse tipo de assistência.

Poucos têm uma visão tão realista da morte como aqueles que preparam as pessoas para esse momento. Encaram todos os dias o monstro para o qual fechamos os olhos a vida toda e o que encontram na sua frente é, muitas vezes, um sentido maior para a própria existência. “Esse contato com a morte me estimula a buscar meus objetivos e, ao mesmo tempo, me conforta”, revela Ana Cláudia.

Das cerca de 1,01 milhão de mortes anuais no Brasil, aproximadamente 800 mil são anunciadas. A maioria das pessoas, portanto, tem a chance de viver conscientemente os momentos finais e, nas palavras da médica, de “redimensionar a própria existência” – experiência que depende primeiramente do controle do sofrimento físico, um dos mais básicos procedimentos no cuidado paliativo. Proporcionar bem estar e ajudar o paciente a encontrar independência, muitas vezes desafiando o próprio corpo, é apenas uma parte desse trabalho, que inclui o conforto emocional, familiar e espiritual e também compreende a conscientização da sociedade com relação à importância de se preparar para essa etapa da vida.

A busca por significado, tão fortalecida pela chegada do fim, acontece de forma independente de religião. “Nesse final, as pessoas põem à prova muitas das coisas em que acreditavam – percebem, muitas vezes, que sua relação com a religião era mais cognitiva que espiritual, de transcendência”, conta Ana Cláudia.

Vivemos, no final, o momento da verdade, mesmo que seja implícita e subjetiva como aquela que derruba certos dogmas aos quais nos apegamos. Nesta etapa, ela se sobressai, por vontade própria, a qualquer ilusão e remodela todas as dimensões do ser humano. Quem trabalha com medicina paliativa sabe que, por mais dolorida que seja, a verdade é aquilo o que os pacientes mais desejam ouvir. Segundo Ana Cláudia, a maior parte deles quer logo saber tudo sobre sua condição. Outros precisam de um tempo maior de aceitação, mas eventualmente aparecem buscando a verdade.

Quando escreveu o premiado How We Die (Como Morremos), em 1994, o cirurgião americano Sherwin Nuland teve a intenção de dar aos leitores a dignidade de saber os que lhes aguarda no final da vida, com base nas transformações causadas pelas doenças mais comuns. “É terrível não saber o que esperar (…). Se eu conto a um paciente exatamente o que esperar de um procedimento, ele tolera muito melhor a dor e o desconforto. Por que isso não seria verdade com relação aos meses ou semanas que temos antes de morrer?”, questionou em entrevista à jornalista Krista Tippet, no programa On Being (2009).

A realidade que coloca o Brasil entre os piores países para se morrer reflete a comum falta de consciência entre os médicos de que a morte nem sempre é algo a ser evitado a qualquer custo. Se os pacientes fossem mais escutados e orientados, o prolongamento da vida se mostraria, muitas vezes, menos importante que o bem estar, garantido pelo simples cuidado e suporte emocional.

Para comprovar isso, o Hospital Geral de Massachusetts realizou, em 2012, uma pesquisa com 151 pacientes com câncer de pulmão em estágio avançado. Metade deles teve cuidados paliativos, enquanto a outra metade continuou recebendo apenas tratamento oncológico convencional.

“Aqueles que foram cuidados pelos especialistas optaram por largar a quimioterapia mais cedo, experimentaram menos sofrimento e viveram 25% mais. Em outras palavras, nossas tomadas de decisão na medicina falharam tão espetacularmente que chegamos ao ponto de infligir sofrimento aos pacientes ao invés de confrontar a mortalidade”, reflete o cirurgião Atul Gawande, autor de Being Mortal (Sendo Mortal), um dos livros mais interessantes de não ficção lançados no ano passado nos Estados Unidos.

Segundo Gawande, o pavor inerente à morte não está nas perdas, mas principalmente no isolamento. Quando tomam consciência de seu curto tempo, as pessoas não pedem muito, não se importam com poder ou dinheiro. Elas querem poder continuar dando forma à história de sua vida no mundo – “querem fazer escolhas e sustentar a conexão com os outros de acordo com suas prioridades”.

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3 Respostas para “A Morte e a Busca por Sentido”

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