Os dois modos operantes do cérebro

Por Michele Müller

Meu filho de dez anos concluiu que deve usar mais o lado direito do cérebro. Intrigada, pedi uma elaboração melhor desse pensamento. Então ele disse que costuma pensar “mais com imagens que com palavras – como deve ser com bebês”. E continuou o raciocínio, articulando que, mesmo quando falava ou ouvia palavras, ainda assim construía imagens mentais. “Você não lembra que um dia me falou sobre isso?”, replicou, quando lhe indaguei sobre como sabia que havia diferenças entre os hemisférios e que as palavras estão no lado esquerdo.

Lembrei-me vagamente. Mas não teria presumido, quando passei a informação, que o conhecimento de um fato aparentemente distante do universo de interesses comuns de crianças nessa idade poderia gerar um raciocínio que foi resultado de um complexo processo metacognitivo –  um processo que envolve conceitos que podem se ramificar tanto na direção a questões científicas como filosóficas.

Aproveitei a naturalidade e fluidez com que o assunto havia sido assimilado por ele e arrisquei ir um pouco além: expliquei que essa é uma versão simplificada da divisão de tarefas de diferentes áreas do cérebro; que ambos hemisférios são utilizados para todas as tarefas, mas que, realmente, quando ele fala, lê e escuta palavras, é o esquerdo que está trabalhando mais. Disse ainda que ele estava complemente certo em concluir que constrói imagens quando conversa ou ouve uma explicação e que sem elas não conseguimos compreender a linguagem.

Essas são constatações relativamente recentes da ciência. Em uma breve conversa como aquela é possível perceber como o conhecimento pode mudar a forma como a mente opera. A compreensão de um conceito neurocientífico, mesmo que de forma bem simplificada, lhe serviu de ferramenta para que pudesse pensar sobre o próprio pensamento; para perceber a relação entre palavras e imagens; para imaginar como funciona uma mente que ainda não foi povoada pelas palavras; e para perceber que o cérebro pode funcionar de formas complementares, mas distintas.

A comprovação de que toda a mente é envolvida nas variadas tarefas cognitivas transformou em mitos conceitos cuja popularidade foi amplamente explorada pelo mercado cultural e literário – como o fato de usarmos uma parte pequena do cérebro ou de pensarmos “mais com o esquerdo” ou “mais com o direito”. O fato de ativarmos ambos hemisférios em todas as tarefas, no entanto, não contradiz a afirmação de que eles operam de forma marcadamente diferentes.

Essa distinção torna possível uma análise da cultura ocidental, que valoriza e privilegia as habilidades analíticas, consideradas racionais – típicas do lado esquerdo. Prova disso são os tradicionais testes de QI, que utilizam o raciocínio lógico como base para se medir a capacidade intelectual de uma pessoa.

A maior parte da vida acadêmica das crianças é voltada para o desenvolvimento desse cérebro analítico e linear, que gosta de encontrar sequências, de categorizar ideias, sentimentos, pessoas e conceitos e, especialmente, de separar de forma bem definida o certo do errado – mesmo que a escolha entre eles gere crises e culpas e se resolva em algum divã.

A sociedade ocidental foi formatada de maneira que esse modo operante leva vantagem na maior parte das vezes, pois é o que “faz sentido”. E o universo extremamente complexo do lado direito usualmente se revela apenas em parte, mantendo-se dominado pelo juiz da mente que se liga a ele por uma estrutura conciliadora, chamada corpo caloso. Ela permite que os lados se comuniquem de forma harmônica para que as informações constantemente processadas sejam organizadas em uma narrativa que pode ser considerada coerente.

A partir de experiências com pessoas que tiveram a atividade dessa estrutura interrompida (um procedimento que tem a finalidade de reduzir crises epiléticas, em casos graves) foi possível perceber nitidamente como cada hemisfério reage de forma distinta e, quando rompida a comunicação entre eles, independente. Um dos principais estudiosos do chamado cérebro dividido, Michael Gazzaniga, concluiu que o lado esquerdo conecta e relaciona as informações para formular uma explicação lógica, geralmente inferindo o que não está evidente. Faz conexões óbvias e, quando necessário, preenche as lacunas para formatar explicações e justificativas.

Os processos do hemisfério direito podem ser considerados mais intuitivos e difíceis de organizar em palavras. Mas o acesso a eles revela que o compreensível não é o mesmo que o explicável; que a maneira como a linguagem é estruturada restringe e limita a comunicação de como a realidade se parece quando é percebida sob o ponto de vista do outro modo operante do cérebro.

No próximo artigo, “A Compreensão Está Onde Palavras Não Alcançam“, essas distinções serão abordadas sob o ponto de vista de algumas mentes brilhantes que refletiram sobre seus próprios processos mentais.

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