30 dezembro, 2018
Como a mente se protege de sentimentos incômodos
Para mães de duas ou mais crianças, o fato de uma mesma situação ser relatada de forma incrivelmente diferente por cada um dos envolvidos é tão corriqueiro que poucas queixas merecem uma solução mais elaborada que um “vocês que se entendam”.
É muito improvável ter um irmão com idade próxima e não sentir a indignação, a revolta, a raiva que a frase “foi ele que começou” pode provocar. E mesmo que a acusação seja de fato injusta, o responsável por fazê-la não apenas quer livrar-se de uma punição: ele realmente acredita no que diz. Uma pequena investigação, com poucas deduções lógicas, logo aponta para incoerências no discurso do acusador. Ainda sem experiência para sustentar as informações de forma mais convincente, ele faz o que qualquer pessoa faria ao se sentir encurralada em seus próprios pensamentos: desaba no choro.
Então essa criança cresce e à medida que os motivos de conflito ficam mais complexos, ganha capacidade de elaborar argumentos mais sofisticados para explicar por que o outro foi quem “começou tudo”. Dificilmente aquele que deve mensalidade em uma escola é inadimplente porque está insatisfeito. O processo é, quase sempre, o oposto: é insatisfeito porque deve; é grosso porque está "com o rabo preso”; agride porque engana.
O uso da razão a serviço das emoções – como na elaboração de justificativas para atitudes e decisões que, no fundo, são condenáveis ou prejudiciais a si mesmo ou a alguém – é um comportamento padrão em muitas situações da vida e envolve processos inconscientes.
Algumas pessoas são particularmente talentosas para manipular informações da forma como lhe convém. A linguagem é tão poderosa que, ao ser usada para compor impecavelmente uma falácia, acaba por convencer o próprio compositor. O bom mentiroso, portanto, mente primeiramente a si mesmo, o que torna o engano mais difícil de se desmascarar.
Isso porque a construção de teorias, projeção de situações, inferências tendenciosas e interpretação distorcida de fatos servem para esconder, primeiramente de si mesmo, alguns dos sentimentos mais incômodos: a culpa, o remorso e a vergonha. São socialmente doloridos, mais difíceis de serem aceitos.
Afinal, aprende-se que certos sentimentos despertam a empatia e o acolhimento (quem nunca recebeu amparo social em um momento de tristeza, rejeição ou decepção?), enquanto a culpa é derivada de atitudes e comportamentos conscientemente nocivos. Admiti-la é admitir um erro; e dependendo do tamanho deste erro, costuma-se fazer de tudo para evitar a humilhação de reconhecê-lo. Inclusive repeti-lo. Como na história do Pequeno Príncipe, em que o bêbado confessa que bebe para esquecer da vergonha. “Vergonha de quê?”, pergunta o príncipe. “De beber”, responde.
Todas essas formas de fugir da verdade podem ser resumidas em um único conceito: shisō-no-mujun. Muitos dos ensinamentos da terapia Morita, uma linha oriental de psicoterapia fundada no início do século, partem de um vocabulário próprio, relacionado às emoções e comportamentos. Afinal, se a linguagem pode nos colocar distante da realidade, com a elaboração de justificativas, desculpas e teorias, ela também pode ajudar a identificar essas armadilhas emocionais.
Em uma definição mais concisa, shisō-no-mujun designa a contradição de ideias – a incongruência entre a realidade e as histórias nas quais a mente se apega por medo, culpa ou pelo desejo de como as coisas deveriam ser. De acordo com o próprio criador do termo, o psicanalista e filósofo japonês Shoma Morita (em Principles of Morita Therapy, 1998): “Existem incompatibilidades entre o subjetivo e o objetivo, entre emoção e conhecimento e entre a prática e a teoria. (...) A contradição entre ideias ocorre quando essa distinção não é feita”.
Sobre a distância entre o mundo ilusório e a realidade, o que ele considera parte normal do processo intelectual humano, esclarece: conflitos internos dolorosos geram pensamentos enganosos que se distanciam gradualmente dos fatos, o que sempre resulta em ansiedade. “É como cometer um erro de um centímetro que resulta em uma diferença de quilômetros no futuro”, ilustra.
Como reconhecer o estado de shisō-no-mujun e voltar a distinguir entre objetivo e subjetivo? Na terapia japonesa, um dos movimentos necessários é em direção à dor, até “tornar-se ela própria”, sem julgamento e sem o objetivo de eliminá-la, partindo de um estado puramente subjetivo – como se entrássemos em um mundo sem espelhos e sem os olhos de outros.
Outra forma de eliminar a dualidade é partir de uma perspectiva totalmente objetiva, enxergando a dor “de fora”, se distanciando dela, como fosse descrever a própria face frente a um espelho depois de fitá-la por tempo suficiente até se dissolver toda a espécie de desconforto relacionado ao ego. Um dos meios para isso é a antiga prática oriental que vem ganhando mais atenção e reconhecimento no Ocidente: a escrita.
De hai-cais a ensaios, a busca por metáforas e descrições bem traçadas de sentimentos complexos possibilita um distanciamento necessário para que possamos sair do estado de shisō-no-mujun. Seja qual for o meio, estar disposto a derrubar as defesas, reconhecer a verdade e ver os fatos com clareza exige coragem, em um processo nada confortável de recolhimento e autoconsciência.
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