O privilégio de crescer em um ambiente inclusivo

Por Michele Müller

ilustração de Hugh Thompson para o livro The Merry Wives of Windsor de Shakespeare.

No decorrer de todo terceiro ano, meu filho foi o responsável por levar seu amiguinho com necessidades especiais até o banheiro nos finais de tarde, enquanto esperavam as mães na saída da escola. Uma função definida pelos dois informalmente e que ele cumpria com prazer.

Um dia, esqueci que haveria aula extracurricular e fui buscá-lo no horário normal da saída. Mas amiguinho já estava lá. Quando me viu, não teve dúvida: na falta do ajudante oficial, transferiu para mim a tarefa de levá-lo ao banheiro. Fui cheia de cuidados, andando devagar e tentando descobrir o que ele conseguia fazer sozinho e em que dependia de apoio. Depois fui consultar meu filho para entender de que forma ele costumava auxiliar o amigo.

– É bem divertido: a gente começa apostando uma corrida até o banheiro.

– Mas ele consegue correr?

– Claro! Eu só preciso correr mais devagar quando a disputa é com ele.

O que para muitos surge de um esforço para agradar, um ato de compaixão ou de responsabilidade, para as crianças que desde bebê estão em contato com as diferenças é simplesmente a arte da convivência em sua forma mais pura e refinada.

Durante o tempo em que estudaram juntos, encontraram formas de se comunicar que não dependiam muito da fala – que era um desafio para o coleguinha – e que pareciam divertir as duas crianças com a mesma intensidade. Descobriram uma linguagem que nasce de um relacionamento livre de qualquer tipo de segregação e de rótulos.

Não foi o primeiro amiguinho com necessidades especiais que conviveu com meu filho. E com cada um é possível observar que as brincadeiras e a comunicação são ajustadas com maior naturalidade, de acordo com as diferentes limitações que apresentam.

A verdadeira inclusão acontece não somente quando as crianças aprendem a aceitar e respeitar as necessidades dos colegas, mas quando deixam de enxergá-las como algo que os define; quando as veem como características que nos diferenciam, sim, mas que compõem a imensa e rica variedade de formas como o ser humano pode interagir com o mundo.

Para as crianças atípicas, uma escola inclusiva traz a possibilidade de uma infância livre do maior dos problemas que elas podem carregar, que é o sentimento de exclusão. Para as outras, traz o privilégio da construção de uma visão evoluída de mundo, em que a diversidade não é apenas respeitada – é valorizada. Uma visão ainda muito distante da nossa realidade, na qual o exercício básico da tolerância a qualquer comportamento, opinião ou escolha que fuja do padrão ainda é um grande desafio.

O escritor, psicólogo e educador americano Thomas Armstrong, diretor do American Institute for Learning, faz uma ótima analogia entre diversidade neurológica e biológica: ninguém diz que um copo de leite tem distúrbio de deficit de pétalas. Aprendemos a apreciar a variedade de formas como a natureza se expressa, assim como aprendemos a enxergar diferenças culturais como manifestações da maravilhosa complexidade de formas como o ser humano comunica suas experiências.

Em seus livros, ele mostra que se vistas pelo prisma da diversidade, as variadas disfunções – de um transtorno de aprendizagem que só se manifesta no início da alfabetização até uma síndrome mais incapacitante – podem revelar capacidades surpreendentes, normalmente escondidas na sombra das frustrações e da exclusão.

Isso está longe de significar que as dificuldades não devam ser trabalhadas com intervenções e estímulos adequados. Pelo contrário: para os problemas que até recentemente eram vistos como obstáculos a serem contornados – e nunca superados -, hoje a neurociência oferece diversas formas de tratamento com base nas descobertas de que o cérebro é plástico e encontra vias alternativas para adquirir habilidades que perdeu ou não conseguiu desenvolver. Mas a habilitação de uma capacidade pode ser muito mais lenta ou ineficaz sem a motivação e autoconfiança que a criança ganha quando se sente valorizada pelos seus potenciais.

É a partir dessa perspectiva e do olhar para os interesses individuais que deve ser construído o desenvolvimento de todas as áreas deficitárias, inclusive emocional e social. Essa abordagem humana e verdadeiramente inclusiva envolve profissionais comprometidos, uma escola que acredita no potencial de cada um e abraça a diversidade e colegas educados com os valores necessários para deixar este mundo um lugar cada vez melhor para se viver.

 

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