25 janeiro, 2021
Por que devemos quebrar o ciclo da desconfiança
Desde a década de 1980, a World Values Services – um network mundial de cientistas sociais – realiza pesquisas ao redor do mundo com a intenção de investigar as diferenças de valores e crenças entre as sociedades e as mudanças nesses traços culturais ao longo das décadas. Um dos índices analisados é o de "confiança nos outros". Segundo os pesquisadores do instituto1, esse aspecto é, de forma surpreendente, um dos mais reveladores dentre todos os analisados. Quanto maior a incidência de pessoas que se mostram otimistas com relação à confiabilidade do ser humano, mais igualitária e desenvolvida tende a ser uma nação.
No Brasil, acreditar nas boas intenções alheias é ingenuidade. "Ficar esperto" é algo que se aprende cedo. Enquanto em países como Nova Zelândia, Noruega e Suécia entre 60% e 70% das pessoas enxergam os outros como confiáveis, no Brasil este índice ficou em 7% na pesquisa realizada entre 2010 e 2014. Em matéria de desconfiança, pouquíssimas nações nos superam – como é o caso da Colômbia, onde apenas 4% da população resistem à descrença geral e mantêm a fé no caráter de quem os cerca.
Em uma nação de desconfiados como a nossa, o normal é partir do princípio de que estamos sendo enganados. Somos especialistas na prevenção de atos mal-intencionados. A falta de confiança no outro torna tudo mais custoso e difícil. Mas contar com o senso ético alheio é arriscado demais no Brasil. Portanto, essa postura descrente é compreensível e facilmente justificável. Quase questão de sobrevivência – especialmente no mundo dos negócios, que envolve desconhecidos com grande chance de estarem entre os espertinhos que não perdem uma oportunidade de agir em benefício próprio.
Empresas não confiam nos consumidores, consumidores não confiam nas empresas, empresários e funcionários tomam todas as precauções possíveis para se proteger das ameaças que um representa para o outro. Pagamos um preço altíssimo por toda essa desconfiança, provocada pela fama do comportamento moralmente flexível da população brasileira. Custos com segurança e burocracias tornam muitos negócios inviáveis. O comprometimento, fator fundamental na construção de qualquer parceria bem-sucedida, é inevitavelmente abalado na falta da confiança.
Enquanto nossos compatriotas não conseguirem conquistar nossa confiança – e não existe o mínimo sinal de que isso está próximo de acontecer – desmanchar a postura defensiva não parece uma opção razoável. Afinal, essa postura surge como uma resposta à decepção, frustração ou medo e logo penetra nas relações, provocando o distanciamento entre as pessoas e gerando mais desconfianças.
O excesso de precaução contra a malandragem pode ser, em um nível psicológico menos evidente, um dos grandes incentivos a esse comportamento egoísta. É mais fácil enganar aquele que não espera nada de nós do que provocar a quebra numa relação de confiança. Se isso é verdadeiro nas relações familiares e de amizade, não seria diferente para o comportamento coletivo.
Sem o voto de confiança dos pais, crianças também não aprendem a confiar nos outros, não desenvolvem o senso de responsabilidade e não precisam se esforçar para corresponder às expectativas com relação ao seu juízo. Tornam-se imaturas e egoístas. Já as que se sentem respeitadas e aprendem a dar valor à independência conquistada sabem o prejuízo que uma quebra de confiança pode trazer. Na infância ou em qualquer época da vida, nada mais dolorido e vergonhoso que decepcionar aqueles que acreditam em nós.
Por conta dessa descrença, os brasileiros não ganham muitas chances de exercitar sua responsabilidade cívica. O que é uma pena. Poucos teriam a atitude de uma escola em Curitiba que, para agilizar o atendimento da cantina no intervalo, passou a contar com a honestidade dos alunos em um sistema self-service de lanches, com uma caixinha para depositar o dinheiro – sem ninguém para conferir. Pode parecer uma atitude arriscada (e, aos olhos sempre abertos dos brasileiros, bastante ingênua), mas é, na verdade, uma verdadeira lição de civismo que compensa o risco – provavelmente seja bem menor que parece.
Quando assumiu a SEMCO, o empresário brasileiro Ricardo Semler, conhecido mundialmente por sua ousadia e práticas inovadoras de gestão, exigiu que fosse abandonada a prática de inspeção de bolsas na saída da empresa2. O índice de furtos de peças não baixou em um primeiro momento. Ao invés de retomar o antigo sistema, ele decidiu afrouxar ainda mais as regras e acabou com o controle rígido de inventário, deixando o estoque acessível a todos os colaboradores. O movimento corajoso de confiança em suas equipes fez com que o problema de furtos da empresa diminuísse até desaparecer.
ilustração de Marco Jacobsen para meu projeto Imagem e Conceito (ed. Matrix)
A cantora americana Amanda Palmer estruturou sua carreira com base em uma relação de confiança mútua que ela construiu com seu público. Não se importa em expor sua vulnerabilidade ao atirar-se na plateia, tirar a roupa em público e pedir todas as formas de apoio quando precisa (ela chegou a escrever um livro sobre isso, A Arte de Pedir3). Em troca, seus fãs surpreendem comprando seus discos quando poderiam facilmente baixar da internet e apostando em projetos muito antes de serem concretizados. Tendo como garantia apenas a palavra da artista, 25 mil fãs pagaram por um de seus álbuns muito antes do lançamento, sendo que 7 mil lhe confiaram o número do cartão de crédito para patrocinar qualquer projeto que ela tenha em mente.
No Brasil, vários artistas estão seguindo rumo parecido, em uma parceria direta e bem-sucedida com os consumidores, baseada na confiança. Como provou Semler, essas iniciativas não devem ficar restritas à arte. O que uma população desconfiada e com fama de pouco confiável precisa é de mais chances de testar a própria maturidade. Temos que deixar que a vergonha incomode aqueles que não conseguem corresponder às expectativas – e não os que são enganados.
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