Como emoções são construídas e desconstruídas

Por Michele Müller

Seriam as emoções construções sociais ou universais e pré-programadas?

autor desconhecido, de Mr. Punch at the Play

Apesar de não haver consenso entre os pensadores – Descartes entre eles – que refletiram sobre quantas e quais emoções são consideradas básicas, o senso comum sempre nos fez acreditar que são universais e que todos os seres humanos são pré-programados a senti-las. Rostos felizes, tristes e preocupados são facilmente identificados em qualquer cultura, o que foi sido comprovado em pesquisas, sendo as conduzidas por Paul Ekman na década de 70 as mais difundidas. Então a neurociência passou a investigar o assunto de forma mais objetiva, a partir de imagens do cérebro e outras informações.

Foi o que fez a neurocientista canadense Lisa Barrett durante duas décadas.  Após centenas de pesquisas com neuroimagens e análises de estudos das emoções, concluiu que nossa intuição está essencialmente errada: as emoções não são necessariamente universais e a interpretação das expressões evocadas por elas pode ser considerada pouco confiável. Investigações lideradas por Barrett mostram que uma mesma expressão facial pode representar emoções distintas e, portanto, é extremamente dependente do contexto e até mesmo da cultura para ser identificada.

Em seu livro “How Emotions Are Made” ela defende que não existe um circuito neural pré-programado para processar as emoções complexas. Elas seriam construções do cérebro baseadas em predições, assim como acontece com toda a aprendizagem e leitura de mundo.

Para que possa interpretar um estímulo, bem como um sentimento, o cérebro recorre a experiências anteriores e prediz o que está acontecendo. Trancado na caixa escura do crânio, para que possa dar sentido de forma ágil às informações que recebe e integra, ele preenche lacunas e fabrica os detalhes a partir do que já vivenciou. Qualquer novo conhecimento interfere na construção de sentido feita pelas predições. Assim, quando olhamos para o rosto de alguém, predizemos o que está acontecendo ou o que vai acontecer, o que o outro sente ou a emoção que determinado estímulo irá provocar com base nas nossas experiências anteriores. Essas previsões são aprendidas de acordo com o ambiente e nas interações sociais.

Isso não significa que não existe uma base emocional inata comum a todos os seres humanos. Mas é preciso distinguir os fenômenos psicológicos mais complexos daqueles que são reguladores dos processos biológicos essenciais para a manutenção da vida, como o conforto e desconforto, o prazer e o desprazer – motivadores da busca por oportunidades e prevenção contra ameaças, que dividimos com todas criaturas com sistema nervoso.

Na visão de Barrett, esses conceitos são sentimentos simples que acompanham os processos fisiológicos e atuam como um reflexo do que está acontecendo no corpo. Mas não dizem muito sobre o que está acontecendo no mundo de fora. Tais detalhes são aprendidos socialmente para que o cérebro construa sentimentos complexos, como ansiedade, frustração, alívio, remorso, encantamento, fascínio e até felicidade.

A ideia de que a emotividade não é um processo fixo e sim fluído e adquirido, é também defendida pelo neurocientista português Antônio Damásio em seu mais recente livro “A Estranha Ordem das Coisas”: “Ao que parece, a maquinaria dos nossos afetos é educável, até certo ponto, e boa parte daquilo a que chamamos de civilização ocorre através da educação dessa maquinaria no ambiente da nossa infância, em casa, na escola, e no ambiente cultural”.

Essas conclusões podem significar mais que uma mudança na forma como as emoções são compreendidas e explicadas. A ideia de que são construídas indica, segundo Barrett, que também podem ser desconstruídas e modificadas a partir da autoconsciência. Podemos ser o que ela chama de “arquitetos das próprias emoções”, ao perceber o que nos provoca determinadas respostas emocionais negativas.

Não significa que isso seja simples, pois não temos acesso consciente às circunstâncias e situações que formaram o enorme arsenal emotivo que guia nosso comportamento. Esse ganho de controle é um exercício diário, que envolve a identificação da emoção e o reconhecimento de que é fluída, está relacionada a situações sociais inconstantes e muitas vezes a necessidades fisiológicas também impermanentes.

Barrett lembra em seu livro, que o corpo não pode ser esquecido quando falamos em processos mentais. Assim como envolvem o contexto social, as emoções envolvem também movimentos fisiológicos aos quais não damos atenção e que podem explicar grande parte das mudanças de humor. Fazemos isso quando cuidamos de crianças pequenas e com o tempo passamos nos considerar “seres racionais” e a tratar corpo e mente de forma separada – uma separação que nunca acontece. Prestar atenção em necessidades como sono, cansaço, incômodo físico, fome, alterações hormonais nos ajuda a entender determinadas reações e a mudar as circunstâncias que promovem emoções negativas. Nomear as emoções, como veremos na próxima coluna, é outra forma de trabalhar a inteligência emocional.

Não precisamos ser reféns dessas emoções e agir sempre de acordo com elas: é possível, como já disse o filósofo Viktor Frankl, aproveitar o espaço entre estímulo e reação – um espaço que representa nossa liberdade e crescimento – para reconhecer a possibilidade de escolhas e assumir o controle sobre as ações.

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