Ao descrever as complexidades de uma vida compartilhada, na autobiografia Hour Glass, a escritora americana Dani Shapiro parte das situações mais particulares para colocar o leitor frente a frente com sua própria realidade, mostrando que muito tem a refletir sobre os próprios relacionamentos quando é levado para dentro da intimidade de outros.
Sua narrativa revela que a beleza das relações não está nas passagens românticas, com todas as expectativas que as acompanham, mas no conforto de ouvir “deixa que cuido disso” e no prazer de poder dizer “agora eu resolvo”. Esse revezamento de forças, de forma fluida e equilibrada, constitui a estrutura a partir da qual qualquer parceria bem sucedida se molda e amadurece.
Ao nos alternarmos nas ações e resoluções daquilo que para o outro parece, ao menos naquele momento, uma tarefa difícil demais, tornamos a vida mais leve, com desafios menos ameaçadores. Como em um jogo, o alcance de objetivos comuns depende de movimentos diferentes e complementares, tendo cada um a chance de agir conforme aquilo o que tem de melhor e o espaço para evoluir de forma constante, em ritmo próprio.
Isso requer o reconhecimento de que somos o resultado de um mosaico de experiências e percepções únicas, que continuarão sendo únicas e, por isso, muitas vezes incompreendidas.
A partir desses universos distintos, a convivência cria e recria produtos comuns, que nascem do que chamamos de “nosso”, e então ganham independência. A riqueza dessa soma, concretizada em projetos, filhos, espaços, expressões e soluções não depende da condição de sermos um só, como o romantismo faz acreditar.
Como reflete Rilke, em Cartas a Um Jovem Poeta, o propósito de um casamento não é criar imediatas similaridades, ao se derrubarem todos os limites. Uma relação enriquecedora seria, para ele, aquela que vai na direção oposta, em que cada um não apenas preserva, como atua como guardião da solitude do outro, “relevando, assim, a maior confiança possível”.
“Uma unificação de duas pessoas é uma impossibilidade, e quando ela parece existir, surge de um consenso mútuo que tira de um ou de ambos a liberdade e o amadurecimento. Mas quando se aceita o fato de que mesmo entre as pessoas mais próximas existem distâncias infinitas, uma convivência maravilhosa se desenvolve, se conseguirem amar a expansão do espaço entre elas”, escreve o poeta alemão.
Essa perspectiva mais realista – mas não menos nobre – do casamento é abordada por Alain de Botton em o Curso do Amor, uma história fictícia baseada na realidade das várias fases da vida construída em conjunto. Ao descrever a forma como diferenças surgem ou inevitavelmente se revelam na convivência, ele sugere que o casamento não é necessariamente o resultado de compatibilidades, mas onde elas se constroem.
Quando expectativa de encontrar em alguém uma espécie de réplica dos próprios sentimentos é frustrada, nossa tendência é querer mudar o outro. Não com a intenção de ensinar, mas de adaptá-lo à nossa própria realidade. E isso geralmente começa com críticas, que geram uma reação de defensiva – mais críticas ou bloqueamento das emoções, prejudicando profundamente a comunicação.
“Um bom comunicador tem, essencialmente, a habilidade de não se perturbar com os aspectos problemáticos ou pouco convencionais de seu caráter. Ele contempla sua própria raiva, sua sexualidade e suas escolhas impopulares e estranhas sem perder a confiança ou cair na autorrejeição. Pode falar claramente porque conseguiu desenvolver um senso de aceitabilidade”, escreve de Botton, sugerindo que confiança, autoconhecimento e comunicação clara não liquidam as diferenças, mas as tornam aceitáveis e até interessantes.
Conhecido por suas pesquisas com casais, o terapeuta John Gottman, autor de cerca de 40 livros sobre comportamento, identificou os quatros principais fatores por trás dos divórcios: críticas, postura defensiva, bloqueamento das emoções e desprezo. De acordo com suas pesquisas, 69% dos motivos de conflito nunca se resolvem e metade dos casamentos acabam nos primeiros sete anos – quando as diferenças aparecem e começam a gerar críticas e respostas que se tornam agravantes.
Alain de Botton, assim como Rilke, ensina que se quisermos formar bons relacionamentos precisamos aceitar heroicamente a condição solitária de que jamais teremos todos os sentimentos profundamente compreendidos; e, de forma inversa, aceitar a limitação da própria capacidade de entender certas reações e necessidades do outro. Essas limitações favorecem a reflexão e autoconhecimento e trazem a chance de ensinar e de aprender – uma troca que, quando não há resistência, permite que ambos evoluam para versões melhores de si mesmos, o que na visão dos gregos antigos, é o grande propósito do amor.
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