Beleza aprende-se a enxergar

Por Michele Müller

Construímos nossa identidade a partir da forma como nos relacionamos com os outros e com o mundo e, portanto, somos moldados pelas mesmas forças contraditórias que sustentam as interações humanas: inocência e culpa, amor e mágoa, entrega e insegurança. O desafio que a vida impõe é buscar o equilíbrio entre elas, o que começa pelo reconhecimento de que uma não existe sem a outra.

Virginia Frances Sterret (A tree of marvelous beauty, 1930)

Em algum momento dessa busca, talvez depois que a primeira metade da vida já tenha se alojado na memória, outras forças podem surgir com um significado novo e transformador. Como beleza e vazio. Não o belo que se opõe ao feio, mas o que vaza para além do campo estético, ignorando padrões e preferências. Aquele que preenche cada espaço do coração, traz um breve conforto e sentido pra vida, e num instante vai embora.

O duelo entre a beleza e o vazio que ela deixa em sua passagem tem poder de redirecionar nosso olhar sobre o mundo. A beleza a gente aprende a enxergar. Ela carrega o tempo em sua composição – e a força do tempo só começamos a compreender, de verdade, depois de uma certa idade: quando nos olhamos no espelho e “parecer mais velho” desperta uma sensação estranha; quando guardamos no armário de cima os brinquedos que nossos filhos mais gostavam; quando vivemos perdas suficientes para entender o valor da presença.

Então o belo ganha um significado abrangente. Estende-se para além da pele, para além do corpo e ganha o que a escritora Ursula K. Le Guin (em The Wave in The Mind) descreve como “profundidade da vida”, em um relato sobre a beleza que sobrevive nas lembranças que tem de sua mãe.

“Há a beleza ideal da juventude e da saúde, que nunca muda e é sempre verdadeira. Há a beleza ideal de estrelas de cinema e modelos de comerciais, o ideal do jogo de beleza, que muda de regras de tempos em tempos, varia de lugar para lugar e nunca é inteiramente verdadeira.

Por trás da imagem desfigurada de sua mãe em seus últimos dias de vida escondem-se outras imagens, em constante transformação, feitas de memórias que, embora pouco nítidas, a escritora considera mais verdadeiras.

“Deve ser o que grandes artistas enxergam e retratam. Deve ser por isso que as faces cansadas e velhas nos retratos de Rembrandt trazem tanto deleite: elas mostram a beleza não com a profundidade da pele, mas com a profundidade da vida”.

 

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