Somos feitos do que nos quebra

Por Michele Müller

Tony Johannot (le diable bouteux)

Muito antes da palavra autoajuda entrar para o nosso vocabulário, quem estivesse em busca de ensinamentos sobre como viver encontraria conforto na filosofia. Procurar soluções sensatas para os problemas da vida, portanto, significava embarcar em profundas reflexões sobre o comportamento humano.

Tudo aquilo que hoje nos aflige converge para uma mesma base de incertezas e angústias que já nos acompanhava na antiguidade. Os primeiros representantes da história da filosofia já nos ensinavam a lidar com a velhice e a morte, com as preocupações financeiras, com as relações de amizade, com as armadilhas do poder e da vaidade e com as inseguranças diversas. Em correspondência a Lucius, há dois mil anos, Seneca dizia, sobre o processo trabalhoso de se alcançar uma vida feliz:

“Ninguém pode alcançar uma vida, já não digo feliz, mas nem sequer aceitável, sem praticar o estudo da filosofia; além disso, uma vida feliz é produto de uma sabedoria totalmente realizada, ao passo que para se ter um vida aceitável basta a iniciação filosófica. Uma verdade evidente, todavia, deve ser confirmada e interiorizada bem no íntimo através da meditação cotidiana: é muito mais trabalhoso manter formes nossos propósitos que fazer propósitos honestos. É imprescindível persistir, é preciso robustecer num esforço permanente nossas ideias, se quisermos que se transforme em sabedoria o que era apenas boa vontade”.

Não foi naquela época e não será agora que a felicidade aparecerá escondida atrás de uma dica, de uma pílula ou de uma solução rápida. Os níveis de ansiedade e depressão que acompanham o aumento do consumismo são provas de que esse tipo de fuga vai dar sempre em uma rua sem saída.

A solidão e os inevitáveis conflitos gerados pela comunicação virtual mostram que, por mais carregadas de mensagens positivas que estejam, as redes sociais também não trazem a resposta para os problemas que nos afastam do que hoje se entende como sucesso ou realização.

Ao invés de transformar a felicidade em um objetivo de curto prazo, poderíamos voltar à reflexão, livre de preconceitos e ideias rígidas, como forma de encontrar equilíbrio e autoconhecimento. Ao invés de não nos permitirmos viver a tristeza, devíamos aceitar que ela também é um estado transitório e que, quando se instala em nosso coração, é porque tem algo importante a dizer.

A participação inevitável do sofrimento no desenvolvimento pessoal é abordada primorosamente pela jornalista e escritora Krista Tippet na entrevista para o projeto Big Think sobre seu livro mais recente, Becoming Wise.

“Somos feitos daquilo que nos quebra repetidamente. Mesmo nos momentos de grandes conquistas, sempre acontece algo que não estávamos esperando. E algumas vezes pode ser catastrófico. O lado bom é que isso é verdade também quando as coisas não vão bem.

De alguma forma, esses momentos de ruptura são um grande e fértil campo de autoconhecimento – e à medida que envelhecemos, isso se torna ainda mais verdadeiro. Quando falamos das experiências que nos tornaram quem somos, percebemos que é nas rupturas que precisamos encontrar sentido, ao invés de apenas suceder ou meramente sobreviver.”

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