Por que as escolas deveriam levar a música mais a sério

Por Michele Müller

Não demorou muito para que as transformações vindas com o livre acesso à informação fossem ecoadas no sistema educacional, trazendo a necessidade de revermos muitos aspectos dos métodos tradicionais. Neste momento em que o conteúdo tende a ceder importância ao ganho de habilidades mentais, algumas práticas antes deixadas em segundo plano encontram a brecha para ganhar papéis de destaque na educação.

Há muito se fala dos reflexos do ensino da música no aprendizado de outras capacidades, como o raciocínio lógico abstrato. Mas apenas nas últimas décadas, com as facilidades tecnológicas, a neurociência está conseguindo comprovar que o conhecimento musical provoca alterações na estrutura do cérebro que, de fato, trazem ganhos importantes em outras áreas intelectuais.

Ao ouvirmos atentamente a uma música, ativamos diversas áreas do cérebro ao mesmo tempo, num exercício prazeroso que finalmente vem ganhando reconhecimento por sua função terapêutica em vários tipos de situações. Se escutar já traz vantagens, os ganhos de se aprender um instrumento são imensamente superiores e definitivos.

Um dos mais significativos estudos que comprovam esses ganhos foi realizado recentemente por pesquisadores da Universidade de Medicina de Vermont, nos Estados Unidos, com 232 crianças entre 6 e 18 anos. Foi constatado que o tempo de prática está relacionado com melhor atenção, maturidade emocional e controle de ansiedade.

O estudo analisou a espessura do córtex – camada cerebral mais externa, responsável pelo processamento das funções mais complexas – a partir de exames coletados pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIMH) com a intenção de acompanhar o desenvolvimento do cérebro infantil. Entre crianças que estudaram música, foi observada maior maturação em diversas áreas corticais, entre elas a área motora e diversas regiões da pré-frontal – que envolve planejamento, organização, memória de trabalho, controle do impulso e processamento emocional. A expectativa dos pesquisadores da Universidade de Vermont é alertar para os avanços que a prática musical pode representar no tratamento distúrbios mentais comuns na infância, como autismo e déficit de atenção e hiperatividade.

Esta semana, cientistas do laboratório de Neurociências da Universidade de Northwestern publicaram um novo estudo reforçando a ideia de que a prática musical reflete em melhor desempenho acadêmico. Ao longo de três anos foram avaliados dois grupos de adolescentes da região de Chicago, sendo que um deles frequentava aulas de música.

Com base na comparação entre os dois grupos, o estudo concluiu que duas a três horas semanais de treinamento musical ajudam a desenvolver as redes neurais envolvidas nas habilidades linguísticas. Segundo os pesquisadores, os resultados mostram que, apesar de não parecer diretamente relevante para muitas carreiras, a música está envolvida no que os educadores se referem como capacidade de “aprender a aprender”.

Uma das grandes vantagens de se trabalhar com a música como instrumento terapêutico está no fácil engajamento das pessoas com essa atividade. Ela atua diretamente no nosso sistema de recompensa, provocando a distribuição de neurotransmissores relacionados ao prazer e estados de entusiasmo e relaxamento – o que garante um maior comprometimento com a prática.

O treino musical exige coordenação de ambos hemisférios cerebrais, embora seu processamento encontra-se primordialmente o lado direito. Essa ativação simultânea faz com que, em instrumentistas, a estrutura que permite a comunicação entre os dois hemisférios – o corpo caloso – seja maior em volume e atividade. Sua maturação permite uma melhor combinação de habilidades precisas e linguísticas com a capacidade de pensar criativamente.

Acredita-se que uma conexão mais intensa e firmemente construída entre os dois hemisférios permite também o desenvolvimento de uma expressividade mais rica, de uma melhor comunicação entre palavras e sentimentos.

Kate Greenaway: The pied piper of Hamelin

A música ocupa um papel importante na história da evolução humana como uma das vias mais eficazes para nos colocar em contato com nossas emoções e organizá-las – o que faz dessa arte algo tão instintivo e natural quanto a linguagem. Como Oliver Sacks já definiu, nós somos uma “espécie musical”, da mesma forma como somos linguísticos.

De acordo com o neurocientista e produtor musical Daniel Levitan, autor de The World in Six Songs (O Mundo em Seis Músicas), transformações no cérebro dos nossos ancestrais permitiram surgir o desejo de se comunicar criando representações artísticas e emocionais – e não apenas factuais. A música, segundo ele, faz parte da formação e da evolução de qualquer sociedade, cumprindo um papel fundamental na criação de vínculos, no registro e propagação de conhecimento e na contenção de conflitos.

Recentemente, descobriu-se que o próprio confronto com as emoções, promovido pela música, também traz vantagens cognitivas. No estudo Funções Cognitivas, Origem e Evolução das Emoções Musicais, de 2012, o pesquisador da Universidade de Harvard, Leonid Perlovsky, mostra que a música, ao promover a reconciliação com sentimentos conflitantes enquanto tomamos decisões – das mais simples às mais complexas -, aprimora também essa função executiva. “Quanto mais diversa e diferenciada nossa nuance de emoções, mais bem fundamentadas são nossas decisões. Seja ao escolher com qual objeto brincar ou ao fazer uma proposta ao namorado, a música ajuda nessas habilidades cognitivas”, conclui o pesquisador.

Essa relação das emoções com a capacidade de tomada de decisão já foi amplamente estudada pelo neurocientista português Antônio Damásio. A novidade é que a música, agora comprovadamente, pode atuar na promoção da melhor comunicação entre essas regiões cerebrais, tão diferentes quanto interdependentes.

 

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