Para ganhar uma habilidade, não basta observar: é preciso praticar, testar, errar e repetir

Por Michele Müller

by Harry Wingfield

Imagine uma criança em frente à televisão, assistindo a programas em alemão ou qualquer outra língua desconhecida, durante várias horas por dia. Em quanto tempo ela aprenderia a falar alemão? Depois de múltiplas exposições a uma mesma palavra ou frase, ela ganharia, no máximo, o entendimento de um vocabulário bastante limitado, que dificilmente conseguiria aplicar em uma conversa. Coloque a mesma criança para brincar com colegas e adultos que só falam alemão e, em algumas horas de interação, ela vai começar a testar palavras. Com interesse e necessidade, em poucos meses, irá se comunicar naturalmente. Ninguém aprende a falar ouvindo, assim como não se aprende a andar assistindo a outros andarem.

Para aprender, é preciso fazer – errar inúmeras vezes, repetir de diversas formas. Em qualquer lugar do mundo, esse processo é base do trabalho com crianças pequenas. Elas aprendem a controlar as emoções, a dividir, a esperar a vez e a respeitar o outro em atividades práticas e interações sociais. E dessa mesma forma desenvolvem as habilidades motoras, de linguagem e de raciocínio.

Até que iniciam a fase de receber informações, divididas em disciplinas, geralmente independentes. E todas aquelas habilidades, que deveriam continuar sendo formadas, cedem lugar aos fatos, muitas vezes entregues de forma desconexa e distante da realidade dos alunos. São tantos que, para as escolas baseadas em conteúdo, não sobra tempo para as atividades coletivas. Nem para falar, nem para trocar ideias com colegas – apenas ouvir. A educação eficaz compreende que pouco se aprende somente escutando. Sabe que menos ainda se aprende se aquilo o que se escuta está totalmente longe da realidade e fora do campo de interesse do ouvinte.

Uma educação focada no aluno não é compartimentada nem hierarquizada. Ela forma – e não apenas informa. O conteúdo não é desconexo e forçado, mas assimilado naturalmente em atividades que respeitam o processo de aprendizagem do ser humano, tão evidente em crianças pequenas – aquele que acontece na prática, envolvendo o ambiente e as pessoas que nele estão.

Toda a aprendizagem acontece por associação: a nova informação necessariamente é relacionada a um conhecimento já consolidado para que faça sentido. O que não faz sentido não é compreendido e sem compreensão não há aprendizagem. Há o que chamamos de “decoreba” – o que pode ser suficiente para passar em alguns testes, mas não para que a informação possa ser manipulada, aplicada e transferida para outras áreas. Um conteúdo muito distante da realidade da criança, portanto, não promove ganhos de habilidades nem de conhecimento e tende a ser logo esquecido.

Nas escolas centradas no aluno, o que ele aprende não é depositado em algum lugar da memória para que um dia, se precisar, possa acessar. O Google e outros extensores da mente que carregamos no bolso tornaram essa prática mais desnecessária que nunca. Em meio à sobrecarga de informações, precisamos, mais que nunca, saber onde procurá-las e o que fazer com elas para transformá-las em conhecimento. Precisamos, portanto, estimular nossa competência inata de questionar, desenvolver o pensamento crítico e fazer jus a um dos grandes diferenciais do cérebro humano, que é a capacidade de manipular informações para a resolução criativa de problemas.

Uma pessoa verdadeiramente educada, para o linguista e cientista cognitivo Noam Chomsky, não é aquela que tem mais facilidade para memorizar uma quantidade enorme de fatos e nomes – apesar de que ainda é isso o que a educação tradicional continua buscando. Em uma entrevista sobre o tema, ele destaca:

“Não importa o que cobrimos, mas o que descobrimos. Ser verdadeiramente educado significa investigar e criar a partir dos recursos que estão disponíveis e que se consegue compreender; saber onde procurar, como formular questões relevantes, saber questionar doutrinas padrão. Mais importante que ter informações guardadas é saber onde procurar, como procurar e o que procurar”.

O escritor e pedagogo português José Pacheco faz parte do grupo de educadores desobedientes que questionam doutrinas padrão e participam ativamente do processo de transformação do ensino. Desde o início de sua jornada na educação, ele se recusou a seguir o sistema convencional, centrado no professor. Percebeu que a aprendizagem é movida por interesse e pela ação e revolucionou as práticas da Escola da Ponte, na cidade do Porto, que passaram do que ele chama de “paradigma da instrução” para o “paradigma da aprendizagem”. E aprendizagem, ele enfatiza, deve partir daquilo o que a criança já sabe, de como ela é.

Dentro do que ele define como paradigma da aprendizagem ou da comunicação, a instrução é um evento cooperativo, centrada na ação e na interação – como acontece com a linguagem, raciocínio e habilidades motoras. “Ninguém é autônomo sozinho”, costuma destacar. Autonomia talvez seja a palavra que mais se repete em seus discursos. Pois mais que ensinar, o grande papel das escolas é justamente esse: formar pessoas autônomas. Não individualistas nem autossuficientes, mas capazes de entender e cumprir seu papel em uma equipe, de planejar, de comunicar-se bem, de pesquisar e buscar conhecimento além dos muros da escola, de respeitar o outro, os limites e as diferenças.

Isso não se aprende em aulas sobre cidadania, mas no exercício da cidadania – ao ganharem espaço para falar e ouvir, não somente seus professores, mas também seus colegas; ao se depararem com a responsabilidade não apenas sobre os próprios atos, mas sobre os atos e necessidades daqueles com quem convivem; ao ganharem a chance de se expressar e de tomar decisões. Na prática, isso acontece durante a realização de projetos coletivos, assembleias, discussões em grupo e pesquisas mediadas pelo professor.

Os projetos contemplam o conteúdo tradicional, mas de forma que podemos considerar inovadora, com a participação ativa e autônoma das crianças. Nas escolas orientadas José Pacheco – mais de cem, só no Brasil – eles são construídos com base no que o educador define como as três dimensões da educação: a do currículo subjetividade, partindo do ritmo, interesse e habilidades próprios da criança; do currículo da comunidade, voltado às necessidades coletivas; e do currículo universal, que leva em conta questões amplas, como o desenvolvimento sustentável.

Assim, no decorrer de um processo movido pela motivação e pela ação, os alunos trabalham habilidades que precisam ser continuamente exercitadas em todo o período da vida escolar (e não apenas no início): as sociais e emocionais, motoras, de linguagem e raciocínio. Sustentado por essas competências, o conhecimento – que inclui as informações previstas pela base comum curricular – passa a ser significativo e transformador; e os alunos, indivíduos que não apenas sabem, mas que pensam, decidem e que fazem.

 

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