“Não existe uma pílula para cada problema da vida”

Por Michele Müller

Líder da equipe que elaborou o manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), referência mundial da psiquiatria, o americano Allen Frances  critica o atual sistema de diagnóstico e a influência da indústria na formação de uma sociedade cada vez mais dependente das pílulas. Confira a entrevista:

 

Alka Seltzer, Roy Lichtenstein, 1966

Qualquer mudança no manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), referência mundial da psiquiatria, pode tirar milhões de pessoas do campo da normalidade. Consciente disso, o psiquiatra americano Allen Frances, líder da equipe que elaborou a redação da quarta e mais importante revisão da publicação, recusou praticamente todas as sugestões de transtornos a serem incluídos no manual, lançado em 1994. Mas com relação ao déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), achou pertinente afrouxar um pouco os critérios para facilitar sua identificação entre as meninas.

Com as mudanças, Frances calculava que a incidência de casos fosse aumentar de forma muito discreta, mantendo-se dentro dos 2% a 3% da população infantil. Mas os ajustes na definição somaram-se a uma combinação de fatores sociais e culturais que as garras oportunistas da indústria farmacêutica não deixaram escapar. E o índice de diagnósticos do transtorno disparou no mundo todo, chegando a quadruplicar nos Estados Unidos.

Frances não nega sua parcela de culpa. Por isso foi incapaz de observar passivamente o fenômeno do hiperdiagnóstico, – do qual o TDAH é um bom exemplo, mas não é o único. Abandonou a tranquilidade da aposentadoria para sair em defesa da normalidade. Lançou-se a um trabalho de conscientização da necessidade de repensarmos os limites que separam o normal do patológico. Limites que ficaram ainda menos nítidos com o lançamento da quinta revisão do manual (DSM-5), em 2013, trazendo uma série de novos distúrbios e, no caso do TDAH, critérios ainda mais frouxos e subjetivos.

Suas considerações e críticas sobre o atual sistema de diagnóstico e a influência da indústria farmacêutica na formação de uma sociedade cada vez mais dependente das pílulas estão no livro Voltando ao Normal, lançado no Brasil pela editora Versal.

Ele ressalta que, uma vez fechado um diagnóstico psiquiátrico – o que lamentavelmente é feito, na maioria das vezes, em uma única e rápida consulta – é difícil livrar-se do estigma que ele traz: muda-se o futuro, mudam-se as expectativas do paciente. E, salvo raras exceções, a informação fatalmente vem acompanhada de uma receita médica, o que explica o aumento catastrófico na venda de psicotrópicos nos últimos anos.

Ao criar a necessidade das pílulas, tira-se da pessoa o poder de acreditar na própria capacidade de superação, ignorando que a resiliência sempre foi uma das grandes virtudes da humanidade.

“À medida que somos levados em direção à medicalização da normalidade, vamos perdendo contato com nossas capacidades de autocura e esquecemos que a maioria dos problemas não são doenças e que raramente a melhor solução para eles está nas pílulas”, escreve em seu livro.

Não que Frances seja absolutamente contra a medicação. Pode fazer uma grande diferença na vida das pessoas que realmente precisam, costuma dizer. Mas enfatiza que esses casos são raros e que as diferenças que separam a normalidade do transformo severo – seja qual for – são geralmente bastante evidentes. A maioria das pessoas que utiliza os psicotrópicos, crianças inclusive, está recorrendo à medicação para enfrentar preocupações cotidianas e problemas sociais que apenas recentemente deixaram de ser normais.

Na entrevista abaixo, o psiquiatra critica as investidas bem-sucedidas da indústria farmacêutica e os problemas do mau uso do manual de diagnósticos psiquiátricos, resultando em uma explosão de diagnósticos e na inevitável medicalização dos problemas cotidianos.

foto: divulgação
  • Como a indústria farmacêutica estimula a venda de medicações psicotrópicas em países onde a propaganda direta ao consumidor é proibida, como no Brasil?

Não sei se isso vale para o Brasil, mas nos Estados Unidos a indústria ainda gasta uma fortuna com marketing dirigido a psiquiatras, pediatras, clínicos gerais, além de pais e professores. E os problemas que criamos nos EUA geralmente são rapidamente espalhados ao redor do mundo.

  • Você acredita que a popularidade da teoria do “desequilíbrio químico”, reforçando a falta de uma substância no cérebro, que só pode ser “reposta” com medicação, afasta as pessoas de soluções que dependem mais de suas próprias capacidades de cura?

A indústria farmacêutica gasta bilhões divulgando sua teoria do desequilíbrio químico e lançando uma pílula para cada padrão de problema. Mas não há um orçamento para o marketing da resiliência humana.

  • Você acredita que o estilo de vida moderno é, de alguma forma, responsável pelo aumento nas taxas de doenças mentais?

A vida sempre foi difícil e nós sempre respondemos às diferentes dificuldades com resiliência. A natureza humana é bastante estável, mas os sistemas de diagnósticos não são. Pequenas mudanças em como distúrbios mentais são definidos resultam em grandes mudanças nos índices – que na verdade não significam nada.

  • Sobre o DSM (manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais), você já mencionou que “o livro como foi escrito é diferente do livro como é interpretado”. Esse mal uso do manual pode ser considerado a principal causa da inflação diagnóstica ou a expectativa dos pacientes também mudou e eles hoje pressionam mais os médicos a prescrever psicotrópicos?

A indústria farmacêutica é a maior responsável pela inflação dos diagnósticos. Ela transforma doença em marketing, vende problemas mentais e pressiona o consumo de pílulas até para situações que não respondem a tratamentos fármacos. Os médicos com frequência prescrevem medicamentos rapidamente e displicentemente para tratar problemas que eles não compreendem em pacientes que mal conhecem. E sim, os pacientes realmente querem uma solução rápida para tudo. Mas não existe uma pílula para cada problema da vida.

  • O grupo etário que mais consome medicamentos psicotrópicos é o da terceira idade, certo? Poderia explicar o que está por trás desse fato?

As pessoas dessa faixa etária fazem uso excessivo das benzodiazepinas (ansiolíticos normalmente usados para ajudar no sono) que causam, entre outros problemas, quedas, confusão mental e problemas de memória. E muitos também recebem antipsicóticos, que reduzem a expectativa de vida. Na maioria dos casos, as drogas que são receitadas como forma que acalmar a agitação poderiam ser evitadas se mais tempo fosse dedicado a eles e com mais contato humano.

  • Gostaria de abordar o impacto do efeito placebo no tratamento psiquiátrico. Qual o papel da expectativa do paciente na sua recuperação?

O placebo é a melhor medicação que já existiu, com o maior e mais favorável custo-benefício. É o que melhor funciona em problemas mais leves. O paradoxo é que, enquanto a maioria das pessoas acredita que precisa de medicação sem na verdade precisar, aqueles com problemas mais severos, que, de fato, se beneficiariam dos remédios, não são tratados.

  • O índice de adolescentes e pré-adolescentes medicados com antidepressivos é muito alto. Esse tratamento é seguro e eficaz nessa fase?

Na maioria das vezes eles não são eficazes na infância e adolescência e podem causar agitação e irritabilidade, aumentando o risco de suicídio e violência.

  • Que alternativa a esses tratamentos você recomendaria a adolescentes com alto nível de ansiedade?

A psicoterapia está sendo muito pouco usada e pode ser muito eficaz. Exercício físico e envolvimento em esportes também trazem ótimos resultados.

  • Muitas escolas exigem um diagnóstico psiquiátrico para fornecer adaptações às necessidades das crianças com dificuldade. Essa sistematização no lugar da diferenciação contribui para o exagero dos diagnósticos?

É um fator importante, mas não a causa primária da epidemia de falsos TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). Ao invés de encarar problemas no sistema educacional causados por salas de aula com muitos alunos e pouca atividade física, a sociedade está rotulando indevidamente crianças ativas e com frequência tratando-as com estimulantes. O melhor preditor do diagnóstico de TDAH é o mês do aniversário: o mais novo da sala tem uma chance muito maior de ser rotulado que o mais velho. É ridículo tornar a imaturidade na infância uma doença e medicá-la. Nos Estados Unidos, nós gastamos quase US$ 10 bilhões ao ano com drogas para TDAH – recurso que seria muito mais bem gasto se fosse investido em melhorias nas escolas.

  • Os fabricantes dos estimulantes conhecem os efeitos de longo prazo do uso da medicação na infância?

Ninguém sabe os efeitos, em longo prazo, de mergulhar cérebros ainda imaturos em estimulantes poderosos por vários anos. Sem querer e de forma irresponsável, estamos fazendo uma experiência mundial descontrolada com as crianças, usando-as como ratos de laboratório sem seu consentimento e sem que seus pais sejam devidamente informados antes de concordar. E como você disse, estimulantes são usados quase como doces. Eu defendo uma avaliação lenta e muito cautelosa do TDAH e o uso do tratamento farmacológico apenas como último recurso.

  • É comum a prescrição de estimulantes por clínicos gerais ou pediatras?

Nos Estados Unidos, 60% das drogas para tratar TDAH são prescritas por médicos de “cuidados primários”, que geralmente têm pouco tempo e pouco conhecimento com relação a transtornos psiquiátricos. Não fazem o acompanhamento sistemático e são frequentemente influenciados pelos representantes das marcas de medicamentos.

  • De que forma o DSM-IV contribuiu para o aumento dos diagnósticos de TDAH e qual era a real intenção da sua equipe?

Afrouxamos um pouco os critérios para facilitar o diagnóstico entre as meninas, que geralmente apresentam mais problemas de desatenção sem a hiperatividade. Uma pesquisa de campo muito cuidadosa previu o aumento de cerca de 15% na quantidade de diagnósticos. Mas a incidência quadriplicou, especialmente por causa do marketing da indústria farmacêutica. Em 1997, três anos após a publicação do DSM-IV, as companhias surgiram com novas drogas caras e patenteadas e coincidentemente também ganharam o direito de fazer propaganda diretamente ao consumidor (nos Estados Unidos). Isso deu à indústria os meios e métodos para vender o TDAH como doença, para que pudesse divulgar suas pílulas de estimulantes.

  • Depois da publicação do DSM-5, em 2013, podemos dizer que as mudanças nos critérios de diagnóstico do TDAH favoreceram o aumento ainda maior da incidência?

Os critérios foram afrouxados ainda mais, facilitando particularmente o diagnóstico indevido em adultos. Isso é inacreditavelmente estúpido e leva ao abuso massivo de diagnóstico como um meio de se conseguir drogas estimulantes para uso recreativo ou aumento de performance.

  • Você defende que a prevalência real de TDAH flutua entre 2% e 3%. Já que não existe comprovação biológica do distúrbio, o que deveria ser levado em consideração para se certificar que a criança pertence a esse pequeno grupo? E para esses, a medicação é sempre necessária?

Severidade, cronicidade, início precoce, prejuízos, histórico familiar. Ainda assim, apenas uma parte dos que se encaixam nessa categoria severa e clássica pode se beneficiar do estimulante. Para essas crianças não existe uma regra geral sobre quanto tempo deve ser mantida a medicação – depende da severidade dos sintomas. Mas deve-se testar a retirada do estimulante de tempos em tempos.

  • Que tipos de problemas psiquiátricos podem piorar com o uso de estimulantes?

Transtornos de humor, ansiedade, psicose, problemas do sono e desordens relacionadas ao uso de substância.

  • Os antipsicóticos também estão ficando muito populares entre crianças e adultos com diferentes diagnósticos. Existem estudos suficientes sobre a eficácia e segurança dessas drogas?

Antipsicóticos devem ser usados apenas em casos psiquiátricos severos. Ao invés disso, eles são prescritos com frequência e sem muito critério, sendo que, além de reduzir a expectativa de vida, podem causar aumento de peso e diabetes.

  • Como podemos saber quando confiar nos dados de uma pesquisa relacionada à saúde mental e tratamento farmacológico?

O melhor é ficar cético com relação aos dados de todas as pesquisas. A maioria não se confirma. Apenas aquelas que atestam a eficácia dos medicamentos – as positivas – são publicadas. E os estudos promovidos pela indústria valem menos do que nada.

  • Sobre o uso excessivo de psicotrópicos, você enxerga alguma mudança nesse cenário em curto prazo?

Há 25 anos, a indústria de tabaco estava na mesma posição que hoje está a indústria farmacêutica – exercia grande influência sobre autoridades e ficou iludindo a sociedade durante décadas. Mas a consciência do público levou a grandes e rápidas mudanças. Acredito que o mesmo pode acontecer com relação aos fármacos. Como disse Abraão Lincoln, “Você pode enganar todas as pessoas por algum tempo e algumas pessoas por muito tempo, mas não pode enganar todas as pessoas por muito tempo”.

  • Você está planejando o lançamento de seu próximo livro?

Sim. Será sobre a felicidade e seu lado sombrio.

 

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